sexta-feira, 8 de março de 2013

Ofélia


Eu sou um desgraçado, meu Deus, um desgraçado! Tive comigo o amor mais perfeito que um dia pudera imaginar e acabei com tudo, meu Deus, com tudo...

  Tive, sem a menor modéstia, todos os prazeres que um homem pode imaginar enquanto estive com ela. Conheci histórias e vivenciei eventos que homem algum ousaria acreditar, enquanto ao lado dela. Amor digno de inveja dos próprios anjos e outras criaturas celestiais, volúpia digna dos mais ardorosos demônios e súcubos. Ofélia era um entalhe minucioso da vastidão do universo e todo seu mistério e beleza; uma obra única do poder de perfeição da natureza: tinha a pele do marfim mais exuberante e raro, moldado a uma silhueta que já serviu de forma a Helena e Cleópatra, mas de delicadeza mais pura e imponente; cabelos tão negros como o mais puro e valioso ébano – negrura também encontrada em seus olhos, ao mesmo tempo pequenos e imensos, fruto da vivacidade que deles fulgurava; seus dentes poderiam ser confundidos com as pérolas do Caribe, incitando até o mais experiente pirata.               Mas além de ímpar beleza, todo seu mistério e esoterismo se difundiam através de seu conhecimento, de suas leituras – sabia como ninguém dos ritos e lendas europeias bem como as sul-americanas. Invocava demônios e suas histórias como se fossem experiências próprias, vivia cercada de misticismos e rituais de purificação e proteção – se notarem é bem estranho, mas o amor e, em especial, Ofélia, me cegavam a isso.
 Era um pub na parte baixa da cidade onde eu me apresentava em saraus – e onde também conheci Ofélia. Recitava Ossian e Byron, invocava Fausto e seus pactos, recriava sobre essas obras todos meus devaneios – chamava a atenção de Ofélia – pelo seu interesse místico – e também da plateia – embriagada e feroz, vaiavam como que por esporte. Não importava, eu tinha aqueles negros vívidos olhos fixados em mim, pulsando e brilhando em uma mistura de tensão e louvor. Ela via em mim um pupilo, um aprendiz, um pote em que depositaria todas suas virtudes.
 E assim se passaram longos e prazerosos anos, em que eu recebia todo o corpo e alma de Ofélia e a oferecia minha devoção e lealdade; nos primeiros anos era apenas uma relação de mestre-aprendiz, mas minha paixão e devoção afloraram desde seu primeiro olhar – e sentia que não tardaria muito para que desabrochasse tudo isso em Ofélia. Passávamos horas a fio lendo antigos escritos latinos, pergaminhos de histórias astecas e ritos e exorcismos europeus. De tantos estudos e práticas, nossas sessões foram se tornando mais macabras – e mais íntimas -, com sessões de extrema luxúria e entrega carnal. E numa dessas sessões eu descobri que Ofélia estava grávida. Não há palavras que transmitiam a emoção que eu senti no momento da descoberta, mas algo não corria muito bem – Ofélia mudou totalmente sua fisionomia ao descobrir a gravidez, parecia horrorizada e desesperada - algo com certeza não corria muito bem.
 Naquele mesmo dia em que a notícia chegou a nós, um singular homem visitou Ofélia em nossa casa, algo muito estranho dado que nossos vizinhos eram mortos – morávamos perto a um cemitério – e não tínhamos amigos – nem família, Ofélia era bem obscura nessa questão. Ofélia logo que avistou o homem empalideceu, era visível o frio que corria em sua espinha. Sem demoras fez questão de atendê-lo e leva-lo para longe da minha presença, fazendo que apenas conseguisse fitar os olhos dele: azuis, azuis e grandes como jamais eu imaginaria que existisse...
 Nove meses se passaram e durante todo esse tempo Ofélia transfigurou-se: pálida, e tísica, abandonou as leituras e minha companhia, murmurava cânticos e praguejava a criança em seu ventre. A noite avançava rápido e ela entrara em trabalho de parto; não havia ninguém, além de mim, naquela casa e buscar ajuda naquele momento seria impossível – o trabalho seria todo meu.  Não recordo muito bem dos detalhes daquele momento – confesso que foi difícil permanecer o tempo todo lúcido com todas aquelas contorções e gritos de dor, contrações e os cânticos que não cessavam. Os cânticos, os cânticos... Misturaram-se a eles risadas e mais risadas, gritos, ameaças, cantos, um encantamento, risadas demoníacas bailavam e pairavam pelo ar. Um misto de ódio e alucinação me tomou - aquelas risadas e cantos, eu precisava calá-los! E assim foi feito: pressionei seu belo pescoço até todas as vozes se dissiparem-adormeci a medida que seu fôlego desaparecia...
 Quando acordei, tentei abrir desesperadamente a barriga de Ofélia e salvar o bebê, mas o que eu vi, ou melhor, não vi, causou-me imensa depressão: ao abrir a barriga dela, não havia bebê algum dentro; a gravidez era falsa...mas como seria falsa? Eu vi os exames, eu acompanhei tudo ao longo dos nove meses!
 Mas a desgraça, meus amigos, a minha desgraça, não cessaria tão cedo: Há pouco tempo resolvi desenterrar Ofélia e levar seus ossos para onde, em seus delírios noturnos, sempre me pedira: a pequena ilhota do rio que cortava a cidade. Ao descer das primeiras pás, um choro estridente de criança vinha da cova.  Comecei a cavar freneticamente até bater no caixão – ébano, como lembrança de seus olhos e cabelos - até que então o chorou cessou, dando lugar a uma risada. Abri o caixão e vi Ofélia – o seu esqueleto – e, ao lado dela, um bebê, o dono do riso estridente, o dono de dois grandes olhos azuis. Antes de qualquer reação, o bebê fitou-me dentro dos olhos, sussurrou alguns poucos versos e desapareceu. Daqueles versos jamais esquecerei, tampouco daquele olhar:

Sorria, sorria bom rapaz
nessa cova toda vida
que um dia sonhou jaz;
da mulher, levarás
o brilho do olhar fugaz,
de teu filho, o sorriso
maligno, e nada mais!

E assim perambulo meus dias, com estes malditos versos na cabeça, e a certeza que, por Deus, sou um homem desgraçado!

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